Flow Love
Vida Amada
Desceu o último degrau da escadaria do Triunfo e olhou a frente. Havia um bocado a andar ainda e só estava no começo. Sim, começo de ano, e a luta para vencer estava em sua alça de mira. Vencer por vencer porque de propósito mesmo só a esperança nua e crua. Esperar objetivamente era algo difícil porque a volatilidade das coisas impedia que se pegasse ao menos uma dessas coisas para se apoiar. Ficava o sentimento de expectativa por um ano melhor e uma perspectiva mais clara do que estava a sua frente agora: um caminho longo e tortuoso. Viver por viver era falta de propósito na vida, nada construtivo, então vencer a falta de propósito deveria ser uma luta honrosa, cujo prêmio poderia ser encontrar algo por alcançar. Viver por viver era uma filosofia que a sociedade abominava com a alcunha de vagabundo. Mas ele não era vagabundo, trabalhava como qualquer cidadão de bem, só não tinha pespectiva clara de que poderia existir um propósito para ocupar sua vida. Uma coisa simples para a maioria, então não deveria ser tão difícil. Mas era. Ele estava entre aqueles que não tinham propósito na vida, embora gostasse de viver. O amor pela vida era relevante e o sentimento era de satisfação por viver simplesmente. Esse sempre foi o sentido, o seu propósito de viver. Viver por viver, uma corrida aqui e ali, uma parada estratégica para retomar o ar, beber alguma coisa gelada, olhar para o céu e agradecer o momento. A simplicidade incomodava por quê? Porque a moda era sair da zona de conforto. Não, não, a vida amada permitia dizer sim às coisas mais simples que ela oferecia. O caminho era longo e tortuoso, ele viu a frente e correu para o abraço.
Chamuscando
A corrida foi longa e ele chegou chamuscado. Becos, trilhas, ruas de asfalto, roçaram suas solas e quando ele viu o que lhe esperava, nem te conto! Caiu ali estatelado, surpreso com a linda mocinha que o esperava tímida e envolvida por um chale branco e pestanas postiças tremeluzentes. Aquilo foi muito para a sua cabeça. Era a noiva que o tinha deixado na véspera do casamento em fuga com um temível forasteiro. Medo, repulsa, raiva, ciúme, resignação. Não necessariamente nessa ordem, mas ele havia experimentado esses sentimentos que se misturaram dentro dele, arruinando-o por um tempo. O forasteiro aparecera de repente em seu vilarejo e arrebatou sua noiva como nas telas do cinema. Ele ficou chamuscado. Por dentro e por fora. Largou a mão de fazer barba e cabelo e só saía para trabalhar e voltar. Era avesso à bebida alcoólica, de modo que sentiu a dor da perda da amada feito uma lança que perfurava corações. Demorou longos meses até que conseguiu superar e tocar sua vida pessoal em frente. Ao menos no trabalho, conseguira uma promoção, pois o chefe reconheceu sua dedicação ao longo dos últimos meses. Na verdade, ele havia mergulhado de cabeça no trabalho para tentar amenizar a dor da perda da amada, quando, então, agora, ele torna a ver a noiva diante dele. Demorou até recobrar os sentidos, precisando de atendimento hospitalar, mas, quando o fez, soube por outras bocas que ele tivera um mal súbito epifânico, e isso o deixou ainda mais intrigado. O objeto de seu sofrimento ganhara às raias do mágico. Percepção aumentada, ele agora percebeu que a imagem da ex-noiva ainda exercia nele um poder considerável. Ele não a tinha esquecido e voltou a pedi-la em casamento.